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O “Papa do Papo”, por Humberto Werneck, no “Estado de S. Paulo”

21 de novembro de 2017

E não é que o Afonso Borges, incansável divulgador da literatura alheia, passou para o outro lado do balcão?

Não, não é assim que se deve dizer.

Incansável divulgador da literatura alheia, o Afonso acaba de instalar-se também no outro lado do balcão.

Ou melhor: com Olhos de Carvão, coletânea de contos lançada pela Record, Afonso Borges está solidificando uma posição que, timidamente, já ocupava no outro lado do balcão.

De fato: Olhos de Carvão está longe de ser a obra de estreia de um autor que, já faz tempo – desde os 18 anos –, vem delivrando escritos seus nas searas da poesia, da literatura infantil e da não-ficção. Tudo, porém, meio na moita, e mais, moita mineira, especialmente densa e enganosa, como se escrever fosse, para ele, habitar de raro em raro um puxadinho de sua atividade principal, a de espalhar por aí boa literatura dos outros.

Difícil, a esta altura, encontrar alguém letrado que ainda não tenha ouvido falar do Sempre um Papo, projeto bolado pelo Afonso Borges, há mais de 30 anos, com o objetivo maior de incentivar a leitura no Brasil. Mas vamos lá, mesmo com o risco de chover no molhado (clichê, apresso-me em dizer, devidamente consignado na página 49 da 2ª edição do meu O Pai dos Burros – Dicionário de Lugares-comuns e Frases Feitas).

Sua fórmula, tão simples quanto bem-sucedida, consiste em botar sob as luzes alguém que esteja lançando livro relevante, e, com direito à participação do público, entabular um papo ao qual se seguirá sessão de autógrafos. Não há hoje editora brasileira que não queira ter autor seu sob aquelas luzes. Se o Chico Xavier, lá onde está, se é que saiu daqui depois de haver desencarnado, vier a psicografar obra que o mereça, é bem provável que o Afonso Borges mande instalar mesa branca no auditório. E, magnânimo, aceitará que baixe ali, numa versão incorpórea, até mesmo o espírito espirituoso de Millôr Fernandes, que, ainda na versão carne e osso, faltou, sem avisar, ao compromisso que tinha com uma casa apinhada, deixando o anfitrião Afonso no aperto que se pode imaginar.

Nada escapa ao bom faro de quem, nessas três décadas de Sempre um Papo, ao longo de nada menos de 6 mil eventos, provocou a palavra de milhares de autoras e autores, entre eles dois premiados do Nobel, José Saramago e Mario Vargas Llosa. Feito maior, só se o Afonso convencesse (não duvido) o Jorge Mario Bergoglio, codinome Francisco, a se abalar de Roma para um Sempre um Papa.

Mas o assunto, aqui, não é um projeto que, nascido num boteco de Belo Horizonte em 1986, tem hoje abrangência nacional – já acendeu suas luzes em algumas dezenas de cidades em 8 estados brasileiros, e até mesmo, por um ano, na Casa de América, em Madri. Suas noitadas, neste momento, fazem parte também da programação do Sesc Bom Retiro, em São Paulo. O assunto não é, tampouco, um evento anual como o Fliaraxá, por ele implantado no Triângulo Mineiro em 2012, cuja edição 2017, com estrelas como Mia Couto, encerrou-se no domingo passado. Mas o assunto, aqui, é outro, é o Afonso Borges escritor, aquele que agora pisca para o leitor com Olhos de Carvão.

E, de cara, me pergunto onde é que esse bicho-carpinteiro da literatura arranja tempo também para escrever, envolvido que está como atividades que, além das já citadas, incluem redigir e ler no rádio suas colunas do Mondolivro, além daquelas que produz como colunista do portal O Globo. (Esqueci alguma coisa, Afonso? Carta à Redação, por favor.).

Curiosamente, os 26 escritos que ele reuniu em Olhos de Carvão não parecem ter sido produzidos nos breves espaços que lhe permite sua maratona de agitador e promotor cultural. Sem pretensão a alta literatura, são histórias, vinhetas, flagrantes captados por um observador sagaz & capaz, dotado para ver o que há por detrás das aparências, e para destilar seus achados, não raro sutis, com a mão delicada e bem-vinda economia de palavras. Coisa de cineasta afiado, pensei ao ler Olhos de Carvão.

Afonso Borges, felizmente, não se mete a revolucionar a arte literária, nem se propõe a convulsionar a sintaxe, com o risco de destroncar os miolos do pobre leitor, como também não se aventura a sacar conclusão ou moral da história. Limita-se a mostrar. Aquilo que João Cabral de Melo Neto volta e meia dizia, adaptando frase de Paul Eluard: escrever é dar a ver com palavras. (Mas nem por isso, pelo amor de Deus, mera reprodução jornalística da chamada realidade). Dizia também que não deve o poeta “perfumar sua flor”, “poetizar seu poema”. Não sei se Afonso Borges, em sua atravancada rotina de difusor das letras, já encontrou tempo e sossego para ler “Alguns toureiros”, de João Cabral, mas sua preocupação me parece ser a mesma ali expressa: não forçar a mão. O leitor que se vire.

Se assim é, não me peça que aponte as minhas preferidas entre as 26 histórias de Olhos de Carvão. Até porque me parecem todas elas merecedoras de leitura. A lamentar, apenas a circunstância de que o Afonso Borges não possa convidar a si mesmo para um Sempre um Papo. Posso garantir que seria um sucesso.

 O Estado de S. Paulo, 21/11/2017, por Humberto Werneck