“A brisa, a queda, o Gueto de Vilna”, de “Tardes Brancas”

27 de janeiro de 2025

 

Hoje, dia 27 de janeiro de 2025, quando se completam 80 anos da libertação do campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, decidi postar aqui, na íntegra, o conto “A brisa, a queda, o Gueto de Vilna”, contido no meu livro de contos “Tardes Brancas” (Editora Autêntica).

 

Trata-se da história real de, Abraham Sutzkever, que escreveu o poema longo Geheymshtot (Cidade Secreta). O que nunca contei é que a história não é ficcional. É exatamente como ele conseguiu fugir do Gueto, antes do final da Guerra. Mas é só o que posso contar. Aí segue. A.

 

A brisa, a queda, o Gueto de Vilna

(Sobre o dia da morte de Abraham

e um outro, de gratidão)

 

 

Aquela ligação que todos os escritores esperam. Recebeu com o coração aos pulos. Ouviu, sim, inglês perfeito – com sotaque, mas perfeito. As palavras foram claras: Nobel Prize. Foi para a televisão e ouviu o noticiário. Nobel de Literatura, Abraham Sutzkever. Agora era cuidar da viagem, da roupa, pensou. E pensou muito no que vestir, estranho. E o que escrever no discurso. Abriu a janela, o vento árido,  ar de Israel.

 

Foi preso um dia antes do início da Segunda Guerra Mundial com sua mulher e encarcerado no Gueto de Vilna, na Polônia. Por sua formação, foi destacado pelos alemães para glosar obras de arte e documentos raros. Fez o trabalho sujo, mas conseguiu esconder, atrás de uma parede de tijolo e gesso, um diário de Theodor Herzl, desenhos de Marc Chagall e Alexander Bogen, entre outras joias.

 

Imprensa, telefonemas, entrevistas e um assédio irritante.  Todos falavam sobre o seu Geheymshtot, um poema épico sobre os judeus escondidos no esgoto de Vilna. Há muito nem pensava mais nisso. Temia o pior. Temia lembrar. Temia ter que ser obrigado a lembrar. Fechou-se. Trancou-se. O telefone tocou, novamente.

 

Sua mulher e filho recém-nascido tinham sido assassinados no Gueto de Vilna. Ele desandou a escrever poemas em iídiche. Conseguiu fazer com que um caderno com os textos chegasse ao comitê antifascista soviético. Eles concordaram em salvá-lo. Fugiu com mais vinte judeus pelas florestas geladas. Sabia que estava sendo perseguido. O ponto de encontro estava marcado: dois dias depois, na clareira de Baltiz. Era simples chegar lá. Era só chegar.

 

Ele conhecia aquela batida à porta. Pausada, leve e nervosa. Seu irmão, Salvan, não esperou ser atendido. Entrou, longos braços abertos. Abraços, cumprimentos efusivos, há muito tempo Abraham não sentia o cheiro de Salvan. Cheiro de cigarro seco no cinzeiro. Deslizou, sentou-se, ofereceu um chá. Sentiu o torpor do ambiente, viajou nos motivos de toda aquela celebração. É o dinheiro do Prêmio, evitou o pensamento.

 

Noite alta, aos poucos, todos foram sendo presos novamente e colocados em um campo improvisado, ali mesmo, no meio da floresta. Para evitar fugas, foram cercados com arame farpado, feito bichos. E vigiaram, despertos. A ordem era cavar, pela manhã, um grande buraco, todos ouviram, em bom alemão. Desconexo, Abraham pensava em como iria chegar ao ponto no qual o avião ia buscá-lo, dois dias depois, como combinado.

 

O telefone não parava em Tel Aviv. Ligações principalmente dos amigos parisienses, fraternos, desde a Segunda Guerra. Mas a cena dos acadêmicos do Nobel, a entrega, a exposição tantas vezes vista na tela com outros escritores, provocava enjoos. Ia fazer setenta e oito anos. Imaginou a viagem até Estocolmo. Só imaginou. E tudo ficou turvo. Não queria lembrar.  Mas estava perto.

 

O olhar fixo no nada de Franz Murer, assassino de sua mulher e filho. A cadeira do Tribunal de Nuremberg era gelada. A madeira tosca e encerada piorava o suor das mãos. A fala era dele, sabia. Mas a imaginação ia longe, perto do mal, longe do real. Um sonho que se desdobra em outro, em espiral. Iidiche, o alemão, o hebraico, línguas se misturam. Sua mulher e o pequeno ressuscitavam. Mas ele falou o suficiente. Ouviu a sentença sem emoção.

 

O dia amanheceu mais frio que o normal. Chão duro de cavar. Os alemães já tinha avisado, acordem cavando.  Não houve como escapar. Cavavam com as mãos. Todos ao redor do buraco, armas apontadas. Olhos ao redor, a visão do conjunto, o timbre delicado do sol nascendo. Em breve, a destruição da alma, do corpo. Espera o estampido. De repente, um mal súbito, ele cai primeiro na vala, antes dos tiros.

 

A televisão ligada, alta, facilitava as coisas. A surdez do ouvido esquerdo também. Divagou e viu Salvan girando a maçaneta, dando as costas e a porta se fechando. Divagou e sorriu. Mas ele continuava ali, falando e gesticulando. Não havia escrito tantos poemas para isso. Os poemas do Gueto de Vilna eram chaves para a liberdade. Eles foram a chave de sua liberdade. Agora, a chave girava, em outro sentido, em sua alma. As coisas.

 

Acorda no escuro, gosto de sangue na boca. Cadáveres acima e ao redor. Luta, desesperado, para sair. Aos poucos, vê a luz do dia. Terra, sujeira, horror e sangue. Sai dali sem olhar para trás. Corre, chega no ponto combinado um dia antes. Espera. O pequeno avião pousa e o leva para a Rússia. Era abril de 1943.

 

O telefone insiste. Atende, agradece. Imagina a cerimônia de entrega, as palmas, a brisa. A lembrança vem. E agradece, novamente, ao desligar.