Além do Direito, a vida, por Kakay

8 de dezembro de 2021

 

O amor pela poesia moveu montanhas. Ao chegar nos nossos canais de Whatsapp, todas as sextas-feira, as leituras do “Poesia ao Cair da Tarde”, falado por Kakay, coisa maior era certo vir por aí. Os seus textos e artigos, antes esporádicos, tornaram-se mercuriais, sanguíneos, contínuos. Um pequeno riacho, ali pelos lados de Patos de Minas, tornou rio e seus afluentes, virados literários, literatura de qualidade. É importante dizer e repetir: antes de serem artigos, crônicas, são literatura de qualidade. O que vem a seguir, a vida leva, transforma e faz girar. Gira, como se diz em Portugal. Um gira! E assim Luiz Fernando Emediato fez chegar a todos, por meio de sua Geração Editorial, “Muito Além do Direito – Reflexões Sobre o Direito, a Justiça, a Democracia, a poesia e a Vida”. Especialmente, a vida, pela qual tanto este nosso Kakay disserta, a cada respiro.

 

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Para apresentar o livro, me ausento e passo quem sabe dizer melhor: Boaventura de Sousa Santos, em prefácio.

Tenho o grande gosto de vos apresentar um livro intenso e surpreendente. Intenso, porque foi escrito com a combinação complexa entre razão e emoção, a que chamo razão quente e a que Bento Espinosa chamava paixões razoáveis. Escrito por um dos mais distintos advogados criminalistas do Brasil, este livro contém em si um grito de indignação e um hino ao respeito pelo direito, pelos direitos processuais, pela legalidade democrática e pela Constituição.

A indignação decorre do atropelo grosseiro, reiterado, indecoroso ao primado do direito por parte daqueles a quem a sociedade confiou a sua salvaguarda. A Operação Lava Jato é alvo privilegiado da indignação, mas o autor está bem consciente de que ela só foi possível com a cumplicidade de poderes e instituições políticas e midiáticas bastantes mais vastas, apostadas em não olhar a meios para recuperar privilégios. E, nessa captura política do direito e das garantias processuais, colaborou uma parte do próprio sistema judicial ao qual a rotina burocrática e o conservadorismo corporativo amputaram o nervo da resistência contra tanta ilegalidade supostamente cometida em nome da lei.

A intensidade do livro decorre também de um dos seus grandes méritos: o de ter denunciado a rapina e a espoliação do direito desde muito cedo, quando outros operadores e observadores do sistema ainda estavam anestesiados com o espetáculo de uma justiça, então entronizada pela opinião pública, que, no afã de expor a nudez de um rei-alvo, se despia de tudo o que fazia dela uma pretensão credível de ser justa.

O caráter inaugural e veemente da denúncia tem uma explicação simples. uma experiência de várias décadas apostada na defesa do respeito e da certeza das regras processuais como única via para dar aos seus constituintes a garantia de que, condenados ou absolvidos, eram tratados por um sistema legítimo que os transcendia e julgara em nome de um bem público maior.

Mas, além de intenso e convincente, este livro é surpreendente. Não conheço outros textos de opinião ou técnicos que se socorram de maneira tão convincente da poesia para fortalecer os seus argumentos. A poesia não surge nos textos para ornamentá-lo. É parte constitutiva da argumentação porque Kakay, um apaixonado pela poesia, sabe que a poesia tem razões que a razão desconhece. Os seus poetas preferidos, uma pequena amostra, dizem com agudeza intensa e intuitiva o que as elucubrações técnicas levariam mais tempo a justificar. Os poetas sabem ir ao âmago das coisas com a leveza própria da evidência que só sabe ser óbvia depois de dita de maneira tão simples quanto complexa. E, além de tudo, bela.

Este livro é uma memória eloquente de um tempo que, longe de ser passado, continuará a assombrar a justiça brasileira por muito tempo, tanto mais que esta está a revelar uma dificuldade embaraçosa para fazer a sua autocrítica e arrepiar caminho. Por isso, além de memória, ele é um aviso à navegação.

Por essas razões, não poderia recomendar mais vivamente a leitura deste livro.

Coimbra, 29 de julho de 2021.

 

Boaventura de Sousa Santos, 80 anos, é doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale nos Estados Unidos e professor aposentado da Universidade de Coimbra, Portugal Escreveu mas de 30 livros sobre globalização, sociologia e filosofa do direito, epistemologia, democracia e direitos humanos. É também poeta e seus trabalhos foram traduzidos para o italiano, francês e alemão.