Discurso de Posse de Andréa Pachá no TJRJ

31 de agosto de 2021

“Meninos brasileiros” ©️Siron Franco , 1991-1992

 

Inícios e fins de ciclos são momentos de inevitável reflexão. Os rituais de transição ganham, hoje, com a nossa posse, inédito contorno. Todos nós, contemporâneos da pandemia de Covid-19, que nos isolou da convivência diária, impediu o luto e a tristeza compartilhada, reduziu a população brasileira em quase 600 mil vidas, trazemos uma cicatriz definitiva na alma. Temos a responsabilidade de traduzir, para as futuras gerações, o que aprendemos, e em quem nos transformamos depois de tanta dor.

 

Se o momento é de extrema felicidade, nessa sessão festiva, impossível experimentá-lo, sem que antes, nos solidarizemos com todas e todos os que perderam entes queridos. Em nome do advogado Silvio Viola, padrinho, amigo, e que certamente aqui estaria hoje, como esteve em todos os momentos importantes da minha vida, homenageio as famílias dos que partiram precocemente. O mundo ficou um lugar menor e mais sem graça, sem a presença dele.

 

A sobrevivência a tanto desamparo só tem sido possível porque, felizmente, somos seres da esperança e do afeto. É em nome dessa esperança, celebrando a vida e o futuro, que agradeço aos desembargadores do Órgão Especial que me elegeram. Um agradecimento especial, ao presidente Henrique Figueira, quem de forma firme, segura e republicana tem conduzido essa Corte, sem cujo apoio eu jamais conseguiria ser promovida por merecimento.

 

O curto tempo me impede de nomear a extensa lista daqueles com quem convivi e aprendi ao longo da vida e dos 27 anos de profissão. Dos bancos da Uerj à juíza do interior, da experiência do cinema e do teatro à Conselheira do CNJ, passando pela militância associativa ao lado do querido Luis Felipe Salomão, nada do que me orgulho e do que consegui executar foi resultado de luta ou de prestígio individual. A magistratura, para mim, só faz sentido se for no coletivo, no plural, na afirmação dos direitos humanos e das garantias sociais. Aos que me precederam nessa estrada, minha profunda gratidão.

 

Chego ao final da carreira, consciente das dificuldades, dos desafios e da responsabilidade que me aguardam. As rupturas e polarizações que assolam o mundo, potencializam ainda mais a importância do Judiciário no cenário político, econômico e social. Quer pela infantilização da sociedade, quer pela incapacidade de diálogo, quer pela baixa densidade da democracia em nosso país, a vida tem sido remetida à Justiça, como se fôssemos a única esfera de solução de conflitos.

 

No Estado do Rio de Janeiro, a situação é ainda mais grave porque convivemos com a violência aprofundada pela desigualdade, com grave crise na segurança pública, e com áreas de risco e exclusão nas quais o Estado tem sido impedido, inclusive de atuar na garantia dos direitos de todas as comunidades.

 

Nosso Tribunal foi e continua sendo referência de gestão e administração, com capacidade para enfrentar tais desafios e escancarar as portas da Justiça para os cidadãos fluminenses que esperam efetividade dos seus direitos fundamentais.

 

As partes nos milhares de processos que julguei e os servidores com quem tive a honra de trabalhar, os juízes e juízas, colegas com quem compartilho as ansiedades do exercício da jurisdição, foram e são minhas vigas de sustentação. Por causa deles, não perdi e espero jamais perder a consciência da relevância do cargo que exerço.

 

Assumo hoje o compromisso de continuar a defender, de forma intransigente, a Constituição da República,  o princípio do não retrocesso social, compreendendo que vingança jamais será justiça e que o grande desafio, em tempos complexos de arroubos autoritários, é insistir na racionalidade, enfrentando a opinião pública todas as vezes em que a voz da maioria se organizar, para silenciar e aniquilar direitos e garantias previstos pelas leis e pela Constituição.

 

Sou uma mulher privilegiada. Nasci e cresci em ambiente amoroso e funcional, cercada de afetos e com sobrevivência garantida, o que me torna ainda mais responsável pelo combate ao racismo, ao machismo, a todas as formas de discriminação.

 

Transitei pelas artes, pela cultura, saberes da mesma raiz da humanidade. Nesse contexto,  não posso deixar de registrar um agradecimento a Alcione Araújo, que partiu cedo e foi essencial para a minha formação, como autora e magistrada brasileira, e à Marieta Severo, atriz e amiga, filha do Desembargador Severo da Costa, em cuja vaga meu pai ingressou no Tribunal de Alçada, e a quem me associo na ressaca cívica e na persistente esperança.

 

Agradeço, ainda, ao Miguel, Patrícia, Bel, Chico e Pedro, irmãos e sobrinhos com quem compartilho o cotidiano, os projetos de um mundo menos hostil, mais igualitário, inclusivo e sustentável,  e ao Geraldo, um amor dos verões da juventude, pela sorte de um retorno no outono, para uma experiência linda de encontros e de liberdade.

 

João e Kike, meus amores, fontes de luz e de vida, não tem sido fácil garantir um mundo melhor para vocês. Mas é esse o meu compromisso. Utopia não é lugar de chegada. É bússola para toda a vida.

 

Vovô Miguel, mesmo de longe, está nos assistindo. Ele, que presidiu esse Tribunal e que até hoje é lembrado com saudades por colegas, servidores e advogados, me legou essa toga que hoje eu visto. Espero que me inspire e me faça chegar à metade do que ele foi como desembargador, e do que ele é como homem público e como ser humano.

 

Com ele e com vovó Léa, nós seguimos aprendendo que pessoas boas fazem coisas boas, que justiça é produto de primeira necessidade e que, sem o olhar empático para o outro, especialmente para os que são diferentes de nós, é impossível viver uma vida digna.

 

Que vocês tenham a sorte e a alegria de encontrar, como eu, um trabalho que os faça felizes, e que por meio dele, vocês possam fazer desse mundo um lugar melhor e mais humano.

 

Meus colegas que aqui chegam comigo: que tenhamos força e coragem para não nos contaminar pela irracionalidade das paixões,  pelos afagos fáceis e elogios oportunistas; que não percamos a conexão com a sociedade, destinatária de nosso trabalho e tenhamos consciência de que ao cumprir e fazer cumprir a Constituição, nos irmanamos com Rosa Luxemburgo em um desejo de um mundo “em que sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”.