16 de dezembro de 2022
Tempo é Lugar
Patrícia Melo
Fofoca brava: más línguas afirmaram que Georgina Augusta da Gama Cochrane de Alencar, digníssima esposa do escritor José de Alencar, foi amante de Machado de Assis. Outras foram mais longe ainda, garantindo que Machado de Assis transmitiu, sim, o legado da nossa miséria para uma certa criaturinha que, embora tenha sido batizada e criada por José de Alencar, era na realidade filho de Machado e Georgina.
A história pode não passar de diz-que-diz-que, mas ainda hoje incomoda terrivelmente José de Alencar, o Jota, que vive sua imortalidade no formigueiro das almas lá em cima, ao lado, entre outros, de Russa (Clarisse Lispector), do Dramaturgo (Nelson Rodrigues), do recém-chegado Delegado (Rubem Fonseca) e claro, do outro célebre Jota, Joaquim Machado de Assis, com quem evita discutir obras como Dom Casmurro, por motivos mais que evidentes. Machado, este suposto adúltero e colega infiel, que tanto escreveu sobre fidelidade e traição, mesmo sem ser convidado – e apesar do fleumático comportamento do “pai de Iracema”, se oferece para acompanhar José de Alencar a uma excursão punitiva ao Rio de Janeiro, a fim de evitar que suas obras sejam reescritas de modo facilitado, num projeto denominado Luta de Clássicos, para uma geração de leitores que não tira os olhos dos celulares.
Este é só o início da trama que Sérgio Rodrigues oferece ao leitor no seu recém-lançado A vida futura, publicado pela Companhia das Letras.
Uma das ousadias do livro é a narrativa machadiana. É Machado quem nos conta toda a história. E aqui vale um parênteses: não acho exagero dizer que quase todo autor acalenta a ideia de realizar um projeto metalinguístico. (Eu mesma já realizei dois, Elogio da Mentira e Jonas, o copromanta). É natural. Muito do nosso desejo de ser escritor, e da nossa imaginação e criatividade vem da nossa vida de leitor. Há frases e enredos de nossos autores preferidos, personagens e descrições, estilos e dicções tão belos e exemplares, tão surpreendentes e arrebatadores, tão perfeitos e desbravadores, tantas vezes lidos, que em nossas mesas de trabalho, enquanto pensamos sobre nossos futuros romances somos sempre tentados: fale com seu ídolo! Leve-o para sua prosa!
Embora atraentes do ponto de vista da criação, projetos metalinguísticos são sempre um enorme risco para um escritor. Se já é difícil chegar perto de nossos ídolos, mais difícil ainda é conversar com eles. Não é incomum nem raro que autor ou leitor ou ambos se sintam muitas vezes frustrados com o resultado de empreitadas neste gênero.
Incorporar a voz de Machado, na minha opinião é tarefa para lá de hercúlea. No entanto, Sérgio Rodrigues realiza com graça e competência seu projeto de metalinguagem. Recupera a elegância, o vocabulário, a sintaxe e o humor machadiano para nos revelar como nosso autor canônico encara a realidade artística, comportamental e linguística do Brasil contemporâneo.
Ao aterrissar na rua do Ouvidor, os Jotas quase não reconhecem o Rio de Janeiro onde viveram. A cidade agora é pura violência e a palavra milicianos não tem mais nada a ver com a Guarda Nacional do Império. José de Alencar sente o golpe e logo se transforma num “cachecol falante”. Machado é salvo pelo próprio humor.
Num campus universitário, o encontramos perplexo com o fato de ser hoje considerado um autor negro – diferente de como ele se via e de como era visto pelo leitor do seu tempo.
A linguagem neutra lhe parece também um bicho de sete cabeças: seria Todes um deus nórdico? Ele se pergunta.
O estilo é comédia, mas as questões são sérias: como elementos fundamentais da identidade contemporânea impactam a linguagem? O que faz parte da dinâmica natural da linguagem e o que é modismo? A quem interessa a simplificação de uma obra literária? O que significa imprimir pautas artísticas da nossa geração em obras literárias do passado?
Sérgio Rodrigues também não se furta de abordar temas consagrados da literatura: fama, imortalidade, e claro, esse deus cruel e vingativo, o Tempo. Numa das sacadas mais brilhantes do livro, o personagem Nelson Rodrigues aprimora, com genialidade, uma conhecida teoria proustiana: “tempo é lugar, tempo é mais lugar do que o lugar”, diz o Dramaturgo ao Machado, referindo-se aos riscos implicados na excursão dos Jotas ao Rio de Janeiro em pleno século XXI. (Proust, se não me engano, afirma que quando sentimos saudades de um lugar, na realidade sentimos saudades do tempo que está conectado à nossa lembrança daquele lugar).
Por fim, resta dizer que Sérgio Rodrigues cumpre à risca a regra de Henry James de que um escritor pode fazer o que quiser, exceto ser chato. Até mesmo ao mostrar Machado aturdido na floresta de novas palavras e termos da nossa língua (“grupos interseccionais, lugar de fala, centralidade, não binário, cisgênero, epistemologia decolonial…”) ele nos faz gargalhar de prazer, doidos para seguir avante na sua trama sofisticada e erudita.
É delicioso ler Sérgio Rodrigues.
(Patrícia Melo é autora de, entre outros, “Menos que um” e “O Matador”