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O Velho e as Borboletas – Leituras de Sérgio Abranches ao pé da página

11 de janeiro de 2023

Por Antonio Sérgio Bueno

A Afonso Borges

 

O que primeiro me chamou a atenção foram os títulos dos primeiros blocos narrativos. São nomes de logradouros da cidade de São Paulo, como “Morumbi”, “Vila Madalena”, “Jardins”, “Pacaembu”, mas também do Rio de Janeiro, como “Leblon”. Esse destaque do espaço talvez se justifique por o tempo se materializar no espaço. Nas dobras do espaço pode ser lido o tempo.

A primeira imagem do livro é espacial e traduz com eficácia estes tempos tenebrosos que estamos vivendo: “É um túnel escuro, que acaba no abismo da pura escuridão”(p.9) No fim da mesma página, uma frase bela e forte: “Pior que a lembrança do que se foi é a nostalgia do que não se viveu”, um equivalente, em bela prosa, deste verso do grande Manuel Bandeira: “A vida inteira que podia ter sido e que não foi”.

A Vila Madalena é o espaço identificador da personagem Maria, perdida no conflito entre os pais. A mãe (Isaura) inflexível nos seus preconceitos e angústias; o pai (Afonso), “analógico”, com dificuldade para compreender a filha (Maria), “digital”. Os professores de Maria também estavam divididos (“tempo de homens partidos”, escreveu Drummond).

Nas páginas 12 e 13 começo a perceber a importância de um dos elementos estruturais da narrativa: o foco narrativo. Há um narrador em terceira pessoa, que às vezes se cola em um ou outro personagem e que cede espaço, com frequência, à expressão direta (em itálico) das vozes dos próprios personagens; na página 12 fala Afonso; na página 13 é a vez e voz de Maria, que, na página 14, reclama de suas melhores amigas, que manifestam um ódio para ela incompreensível. Ao usar a expressão “o lado delas ganhou, o meu perdeu”, percebe-se que o maniqueísmo que preside as relações humanas nesta altura do século 21, no Brasil, contamina até o vocabulário cheio de antíteses das personagens.

No início, fiquei preocupado com um certo didatismo, em que se corria o risco de os personagens não passarem de tipos a representar posições ideológicas, mas, aos poucos essas personagens começam a se complexificar e a convidar o leitor a uma densa reflexão sobre o tempo que nos compete viver e entender.

Os diálogos são convincentes porque perfeitamente verossímeis. Maria revela lucidez ao dizer “Entendo o lado deles e discordo.” (p.17) e a mãe mostra toda sua intolerância e agressividade ao tentar transferir para a filha tais traços de seu próprio comportamento: “— Maria! Não seja intolerante e agressiva!” Como adverte o próprio autor nos agradecimentos que antecedem a narrativa: “Qualquer aparência de realidade nos fatos narrados não é mera coincidência.”.

O narrador vai espalhando pela narrativa e pelos personagens frases que não lemos impunemente porque exigem do leitor uma parada reflexiva diante delas. Cito algumas: “É a reação da pessoa a quem dirigimos nossos atos que dá o significado do que fazemos, jamais nossas intenções.” (p.20). “É preciso ter certa latitude de pensamento.”(p.24). “A gente não escolhe os irmãos, mas escolhe com que intensidade amamos os irmãos que nos são dados.” (p.27).etc.

Na página 29, surge o personagem que será chamado apenas como “Velho”, uma espécie de codinome, como era comum entre os combatentes clandestinos da ditadura de 64/68. E o “Velho” é justamente um remanescente dessa luta e cuidava do “Jardim das borboletas”, o que nos remete imediatamente ao título desta narrativa. Ele, o Velho, enfrentava com suas borboletas o “mundo enraivecido” (perfeito adjetivo para caracterizar os tempos de agora). Outras características da “agoridade” são a morte das utopias, o desencantamento do mundo as ideologias vistas como “cápsulas vazias”(p.32). Numa fala em itálico, Afonso fala em “a verdadeira liberdade” (p.36). Até Afonso é contaminado pelos pensamentos que trazem uma verdade única que tem numa frase de Jesus Cristo sua matriz modelar: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida.” No meio da página 38, o maniqueísmo vigente hoje aparece até no aproveitamento binário dos argumentos de Afonso por grupos de pessoas que se digladiavam ideologicamente.

Novos traços do comportamento do Velho vão surgindo, aumentando a importância, na economia da narrativa, dessa personagem: “o portão sempre aberto” (p.42), “Tinha o bom hábito de ouvir os outros” (p.42), “Buscar a terceira margem” (p.43) para além das “duas margens poluídas”. O Velho passa de “mentor” a “oráculo”, aquele que fala por enigmas. (p.44)

Legal demais o aproveitamento, por parte do narrador da arte do graffiti praticada nas ruas de São Paulo, para conferir verossimilhança ao personagem Garoto que, sintomaticamente é anônimo, o que aumenta sua invisibilidade: “Já faz tempo que São Paulo borda / a morte na minha nuca”. (p.47), invisibilidade reforçada pelo capuz que lhe cobre o rosto. Que frase forte esta: “Um rapaz preto quando corre tem a morte gravada nele”. (p.49)

Muito bem aproveitada a alegoria do futebol para espelhar o momento político atual (um autêntico FLAFLU).

Aprofunda-se minha certeza de que este livro é o melhor retrato do comportamento individual, social e político dos brasileiros no que eu chamo de agoridade. Esta narrativa está me buleversando porque todos nós vamos encontrar nela um ou mais espelhos em que nos reconhecemos, um leque amplo de comportamentos.

O INTÉRPRETE… não nos prepara para vencer debates políticos, mas nos ajuda a ouvir melhor o diferente, a conviver melhor com o contraditório. Parece-me que nenhum leitor sensível percorre impunemente as páginas deste livro. São muitas as situações que compõem uma figuração muito clara e preocupante de uma sociedade adoecida, enraivecida e polarizada:

– o clima beligerante entre os irmãos Eduardo e Paulo, que mostra uma “família fraturada”(p.62) por “divisões irremediáveis”(p.62).

– na sua fala em itálico, nas páginas 62 a 65, Rita encena um conflito que se repete com triste frequência e que leva, muitas vezes, à ruptura do tecido familiar: Paulo defendendo a hierarquia e a meritocracia, em confronto com Eduardo que, por sua vez, se posiciona pela rebeldia e pela contestação (p.63). Uma “senda interminável de desencontros” (p.64), conclui Rita. Há uma passagem, no discurso do narrador, em que os dois irmãos em pé de guerra são mostrados numa imagem rigorosamente simétrica e espelhada: Os irmãos seguiam por ruas paralelas. Um seguia do norte para o sul, o outro do sul para o norte.” (p.76).

– o “garoto de moletom camuflado” aparece reiteradamente em sua luta pela sobrevivência em um espaço social que pretende aniquilá-lo: “Estava sempre atento e preparado. A cidade o espreitava” (p.61-62).

– às vezes o conflito chega às vias de fato, como na briga do casal Raquel e Luciano (p. 95), mas o conflito pode se instalar até na própria pele da personagem: “E Esther, uma ativista, que se definia como feminista, socialista e judia da pele acobreada dos palestinos (destaques meus – p.78), fazendo lembrar o famoso verso de Sá de Miranda: “Comigo me desavim.”

– os conflitos se sucedem: Eduardo X Afonso (p.88-89), Mas o diferencial desta narrativa está na capacidade do narrador (representante do autor dentro da obra) de explicitar os pensamentos dos litigantes da maneira mais clara e com os melhores argumentos possíveis para cada lado. Um ótimo exemplo está nas argumentações pró e contra o VAR nas partidas de futebol, como podemos ler nas páginas 54 e 55.

Agora o que eu chamo de “o pulo do gato” desta narrativa: o caminho da superação do binarismo começa pelo conhecimento pleno dos argumentos do outro antes de tentar combatê-los. É o que ocorre quando Maria narra ao pai, Afonso, a discordância entre ela e o colega Felipe sobre se o graffiti é arte ou não; “quem discordava do outro tinha que mostrar que entendeu tudo que o outro tinha dito.”(p.70). Portanto, este livro de Sérgio Abranches não se limita a mostrar em detalhes os argumentos de dois contendores. No exemplo acima, ele mostra o início do caminho para superar a polarização.

A meu ver, até onde li (p.100), o ponto mais alto deste livro é o brilhante recurso técnico do qual o autor lança mão ao misturar no mesmo bloco em itálico os pontos de vista das personagens Carla e Esther, sem a mediação do narrador, como se pode ver nas páginas 92 e 93: o foco narrativo está em Carla na p.92 até a metade da p.93. DO meio da página 93 até o início da página 94, quando termina o trecho em itálico, o foco desliza subitamente para Esther. Por que valorizo tanto este artifício técnico? Porque ele potencializa no plano formal o que já está sendo dito no que se convencionou chamar de “conteúdo”. Quando um conteúdo encontra sua forma mais perfeita de expressão, consumou-se um trecho de prosa literária artística (como no caso desta narrativa) ou um poema (em se tratando de versos).

Claro que percebo que o compromisso com a observação suplanta cabalmente o apelo à imaginação. Mas trata-se de um projeto honestamente assumido pelo autor a partir da escolha da epígrafe, recortada de “Aos que vierem depois de nós” de Bertold Brecht. Claro que os personagens e figurantes são fictícios, mas raramente a ficção se aproxima tanto da chamada “realidade”, veiculada diariamente nos jornais falados e escritos. Há momentos históricos que não só permitem, como exigem um posicionamento do autor mais ostensivo diante dos fatos históricos. Lembro-me de Mário de Andrade dizendo “Sou inimigo de meu passado”, a propósito de livros seus anteriores menos engajados socialmente. Parece que estamos vivendo outro desses momentos que pedem inclusive aos artistas um compromisso maior com a transformação de determinada realidade. Sérgio Abranches atende a essa convocação.

Há, neste livro, um intenso dinamismo narrativo devido ao entra-e-sai de figurantes e personagens. São muitos os figurantes (Renata, Caio, Biu, Sara, Keila, Iara etc) que se sucedem em cena e poucos os que podem ganhar o estatuto de personagens (Afonso, Maria, Isaura, Eduardo, Paula, o Velho , a professora Dayane e o jovem de moletom camuflado e capuz sobre a cabeça). Esse grafiteiro, que pintava sempre um buraco, funciona, nesta narrativa, como um refrão em um poema ou um hino.

Depois dessas observações de caráter geral, vou sublinhar algumas passagens que me impressionaram no corpo a corpo com o texto:

– a criação do neologismo “digiversar”(p.104).

– o flashback de Afonso (p.109). Um detalhe no final desta página mostra como o autor não é maniqueísta no sentido de separar personagens que representassem um lado “certo” e outro “errado”. Afonso, mostrado como um personagem capaz de empatia, que defende posições progressistas, deixa-se levar por um claro preconceito ao dizer: “Não podia dar certo. Família de militares…”(p.109).

– certas palavras definem um tempo que eu chamaria de agoridade para se situar cronologicamente o enredo dessa narrativa: Instagram, WhatsApp, fake etc.

– nos “Agradecimentos”(p.7), o autor escreve:”Qualquer aparência de realidade nos fatos não é mera coincidência”. Qualquer leitor bem informado reconhecerá traços bolsonarianos neste parágrafo do narrador: “Essas posições sem nexo são a versão contemporânea da ideologia, rasas e de lógica precária. Os partidários dessas maluquices fazem associações espúrias o tempo todo. Criam um oásis imaginário no passado, o endereço da virtude perdida, mas eles são tudo, menos virtuosos.” (p.113).

– vale observar que a estratégia usada pela professora Dayane, na Escola Pública, para acalmar os ânimos de dois grupos de alunos em conflito é a mesma utilizada por um professor na segunda escola particular frequentada por Maria (filha de Afonso).

– No final do primeiro parágrafo da página 128, lê-se: “Um jovem preto morre a cada 23 minutos, escreveu (Biu) sem lágrimas”. Tão estarrecedor quanto o dado estatístico, é o detalhe de Biu escrever sem lágrimas.

Observação de caráter geral: À medida que minha leitura avança, a narrativa vai-se adensando. Parece-me impossível a qualquer leitor deste livro não se reconhecer em nenhum personagem, em nenhum dos diálogos, em nenhuma das passagens em itálico. É muito rico o painel das posições ideológicas ou existenciais encenadas aqui. Cada vez me envolvo mais nesta trama e sinto impulsos de me posicionar diante de uma fala, de me indignar com ações ou situações mostradas. Na página 150 (embaixo), leio esta frase do narrador: “Ninguém termina a viagem sem se transformar.” Penso que ela se aplica perfeitamente à aventura intelectual e emocional que é a leitura deste livro. Não se sai do mesmo tamanho que nela se entrou.

Em comentário anterior, chamou-me a atenção um movimento de aproximação entre os blocos discursivos em itálico: primeiro, a presença do discurso do narrador (em tipo de letra normal) entre os blocos em itálico; segundo, a justaposição desses blocos, sem a intermediação do narrador e terceiro (descobri na leitura de agora), a fusão de 3 personagens num só bloco em itálico, como ocorre nas páginas 154 e 155. A correlação entre esse movimento formal e o crescimento do processo de aproximação entre personagens me encantou.

Agora, alguns detalhes:

1 – A morte violenta de Carolina é um dos mais complexos momentos da trama porque nos faz visitar o que o narrador chama de “território difuso entre a negação e a revolta.”(p. 132).

  1. o amor de Fernando por Carolina, brutalmente assassinada, é tipicamente romântico (e isso é explicitado na narrativa) pois é chamado, em determinado ponto, de “amor absoluto”. O amor romântico também não aceita limites e os amantes flutuam entre o infinito (negação de limites no espaço) e a eternidade (negação de limites no tempo).
  2. gostei muito de perceber também a consciência da própria linguagem na elaboração deste romance (nomeio assim sua espécie literária por possuir diversos núcleos narrativos, que se articulam na trama): O autor lança mão de conceitos linguísticos para obter efeitos estilísticos. Exemplos: “Carla aceita suas (de Fernando) reticências (grifo meu)” (p.155),

“Essa falta fatal absoluta”(p.153), com um evidente anagrama perfeito entre “falta” e “fatal”. Pode-se falar em estilhaços de versos espalhados no meio da prosa literária desta narrativa.

“Eu quase o entendo, como quase entendo o Velho. Eles me ajudam a quase me entender.” (grifos meus) Nesse exemplo, a repetição do “quase” tem o que eu chamo de a força da véspera, no mesmo sentido que podemos dizer que a utopia é um “lugar virtual” para o qual se caminha, mesmo sabendo que não se vai chegar nunca.

Ao afirmar que esta narrativa supera as limitações de um romance de tese padrão século 19, não estou dizendo que ele não lança mão de tipos e figurantes para denunciar preconceitos ou impasses individuais ou sociais do nosso tempo, fazendo uma concessão ao espaço do romance de tese tradicional para alcançar o objetivo ético mais alto de denunciar aquela situação específica. Sirva de exemplo as figurantes Júlia e Bruna, que comparecem a esta narrativa com o claro compromisso do autor de denunciar a homofobia. Elas foram brutalmente agredidas (não sobreviveram às agressões) pelo fato de se beijarem quando se despediam para uma breve viagem de Bruna. Como disse a personagem Clara: “— Foi um ataque homofóbico. Foram espancadas porque eram lésbicas.” (p,195)

Também, eu já havia mencionado que este livro apontava um caminho para a superação da intolerância maniqueísta que marca nossa vida social recente: o conhecimento pleno dos argumentos do contraditório. Nas páginas que acabo de ler enumero outras sugestões como “resistir à tentação da intolerância”(p 197), “É preciso provocar as instituições, forçá-las a reagir e defender mais severamente os direitos fundamentais, a democracia. (p.198). Eu acrescentaria a Constituição. “A primeira coisa a fazer era afastar o desalento.” (p.199) entre outras sugestões espalhadas nas falas dos personagens.

Mais alguns detalhes: – Sensualidade e delicadeza em uma cena de amor entre Afonso e Esther: “Reconheceram-se, andantes, ardentes, amantes. Buscaram cada mínimo ponto um do outro, para ver o arrepio do prazer.”(p.170).

– o figurante Fred entra em cena apenas para denunciar preconceitos da esquerda, já que os da extrema direita já foram sobejamente mostrados: “No fundo é isso, meu crime era ser de direita, um liberal. O que quer que eu dissesse merecia repúdio ou descrença.” (173)

– a força das experiências inaugurais (mito da iniciação): “(Maria) Estava ansiosa para compartilhar com o pai sua primeira experiência real de protesto nas ruas.”(180).

– Gradação das rupturas: dentro do indivíduo, na família, na sociedade e no mundo: “Nossa família é o retrato da sociedade. (…) O mesmo está acontecendo com o mundo, com o planeta.”(p.187).

– literariedade – um belo Paradoxo: “A noite precoce, carregada de fumaça, acendeu a consciência de que nada daquilo era natural.”(p.191)

– o equilíbrio precário das frentes amplas (atualíssimo); “O fio delicado que unia aquelas tribos era a rejeição ao governo.”(192).

A frase de Esther “Só os que sofrem o preconceito na carne podem saber.” (p.201), foi dita a propósito da agressão sofrida por Bruna e Júlia, que se amavam. Mas seja qual for o preconceito, me remete a uma frase de Ricardo Aleixo, em recente declaração: “Não sou antirracista, sou negro.” porque só um negro sente na própria pele toda a brutalidade do preconceito racial contra eles.

O garoto de moletom camuflado, que aparece intermitentemente na narrativa, só tem seu nome (Roque) revelado à página 215, justamente quando alguém (a professora Dayane) o reconhece não só como gente, mas como artista.

O narrador, mesmo tendo lado nos embates políticos, não deixa de criticar também o seu próprio lado “É hora de resistir, protegendo-se contra o ódio. Nosso e deles.” (p.209).

Vale lembrar alguns exemplos de literariedade, de poeticidade mesmo, que conferem a esta narrativa, para além de seu engajamento social, a categoria de obra de arte literária: à página 202, Lê-se esta bela frase: “A noite veio sem lua e sem consolo.” Mais para o final do livro fulguram lindas imagens sobre as borboletas, como “colorida teia em movimento”(p.235), “um manto protetor”(para o Velho, seu intérprete, p.235), “um mosaico vivo”(p.236), “cerca viva”(em torno do Velho, p.236) e “nuvem caleidoscópica”(p. 236). As três últimas páginas deste são de uma beleza sublime. Um outro exemplo de uma bem sucedida estratégia formal literária está nas últimas falas em itálico (p.226 a 228), que mostram os discursos de Afonso e Esther completamente misturados, o que traduz de forma incrivelmente feliz a opção existencial deles por tentarem uma vida a dois.

Esta narrativa não se esgota em denúncias (embora as faça de forma candente), mas aponta algumas saídas, como um possível início de reconciliação entre Maria e sua mãe (Isaura) no diálogo travado à página 222. A tentação de uma solução piegas para o conflito mãe X filha não alcança o autor de O INTÉRPRETE DE BORBOLETAS. Outro exemplo de caminhos para a superação da polarização política que tanto infelicita os brasileiros: “,,,não era bom aguçar mais os conflitos. (…) Seria a hora de procurar o que unia, não o que separava.”(p.208). Até o Instituto que acolheu o garoto de moletom camuflado é uma das saídas para salvar os meninos de rua.

No final da narrativa, a sintonia fina entre o autor e o tempo que lhe é dado viver alcança a pandemia que nos afetou a todos, com as pessoas isoladas tendo que se haver consigo próprias (pelos menos nas classes sociais mais favorecidas). O autor fala também na pandemia entre os mais pobres, justamente na última aparição do garoto de moletom camuflado (p.234).

Na muito bem escolhida epígrafe para o último capítulo, que traz a última visita dos personagens ao Velho, lê-se: “a poeira deste mundo / pesa no meu corpo. / – voa borboleta!” (Kobayashi Issa). Essa borboleta alçando voo me parece clara alusão ao desaparecimento do Velho, essa fascinante e enigmática personagem. O Velho é o contraponto mitopoético nesta narrativa tão realista (no sentido do século 21, não do 19), que retrata com enorme competência a vida social e política no Brasil.