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Uma Biografia e Seu Escritor, por Ângelo Oswaldo

24 de julho de 2019

Acabo de descobrir no perfil do Facebook do querido João Barile um texto de Ângelo Oswaldo sobre o livro “Meus Começos e Meu Fim”, de Nirlando Beirão, publicado pela Companhia das Letras.  Com imensa alegria, replico neste espaço: 

 

(De João Barile): Meu caro amigo Angelo Oswaldo acaba de escrever uma bela resenha sobre o livro “Meus começos e meu fim”, do grande jornalista Nirlando Beirão. O livro foi publicado este ano pela Companhia das Letras. O ensaio de Angelo será publicado no próximo número da revista da Academia Mineira de Letras. Reproduzo abaixo o texto, na integra.

 

Nirlando Beirão: “Meus Começos e Meu Fim”

Por Angelo Oswaldo de Araújo Santos

 

Em palestra admirável proferida em Belo Horizonte, em 1977, Antonio Candido destacou o gosto do autor mineiro pela autobiografia, ao focalizar a produção de três deles: Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e Pedro Nava. O foco principal demonstra como os mineiros saltam do particular para o geral, sempre em busca da universalidade da linguagem poética.

 

Do poeta itabirano, o exemplo fixa-se em “Boitempo”, lançado em 1968. Para o crítico, Drummond usa “o seu verso seco e humorístico, o seu firme golpe de vista e sua capacidade de escorço” para construir, “num clima de poesia e ficção, a verdade que é o mundo do eu, e o eu como fruto do mundo”. Murilo Mendes faz autobiografia declarada em “A idade do serrote”, também de 1968. Mas, prossegue Candido, a prosa tem um ímpeto de tal forma transfigurador que se instala dentro da poesia, “o que alarga o restrito elemento particular de recordação pessoal”.

 

Ao analisar os dois primeiros livros de Nava, “Baú de ossos” (1972) e “Balão cativo” (1973), Antonio Candido afirma que “a autobiografia desliza para a biografia, que por sua vez tem aberturas para a história de grupo, da qual emerge em plano mais largo a visão da sociedade, traduzida finalmente em certa visão de mundo”. A transfiguração da autobiografia resulta do “tratamento nitidamente ficcional, que dá ares de invenção à realidade, transpondo para lá deles mesmos o detalhe e o contingente, o individual e o particular”.

 

 

Com essa acurada percepção de Antonio Candido, posso reconhecer, na autobiografia de Nirlando Beirão, recentemente lançada – “Meus começos e meu fim” – a emergência dos elementos e das dimensões que seus ilustres conterrâneos gravaram nas obras abordadas pelo mestre da crítica literária. Está ali o Narrador – e Candido pensou em Proust quando passou a assim nomear os três autores – que se desvela, ingressa na vida dos ancestrais e apela para a imaginação e a fabulação, e também se supera a fim de concentrar-se no objeto e ver o sujeito como criação.

 

O fato de Nirlando ter intercalado a sua autobiografia à narrativa biográfica do avô paterno, num jogo que mescla as duas trajetórias e as eleva até um campo de grande generalidade, leva-me a repetir Candido a respeito de Nava: “E assim o Narrador imprime força ao seu relato, na medida em que garante tanto o encanto particular do pitoresco, quanto a exemplaridade das situações”. A marca da literatura é “a relação reversível Particular – Universal”, “Realidade – Invenção”.

 

Ao contar sua vida, que cresce luminosa até alcançar a plenitude de um trágico fenômeno, do qual se origina a narrativa, Nirlando Beirão decidiu entrecruzá-la com a do avô, cujo drama pessoal, só mais tarde apreendido e compreendido pelo neto, é compartilhado no itinerário comum da perda e da angústia, do prazer e da perplexidade, da dor e do fim. Jornalista, e um dos melhores do país, ele procurara, antes, deslindar um enigma familiar. A doença incurável, no entanto, provocou a junção das duas metas, e o biógrafo reportou-se a si mesmo, na companhia solidária do ancestral. Ambos caminham pelo labirinto de revelações. Nirlando, no “duvidoso privilégio de chorar todos os dias a própria morte”; o avô, enfim reconciliado consigo e com o clã pela certeza da verdade. Nada, porém, deixa de revestir-se de humor e ironia, graça e espírito. Recorro a Drauzio Varella, que vê no resultado da jornada “uma reflexão profunda sobre o significado e a fragilidade da existência humana”. Uma obra viva e contemporânea renova e revigora o gênero autobiográfico, ao conferir ao autor a senha que o consagra na literatura.

 

Antonio Candido terminou seu ensaio com a citação de um outro mineiro, raramente lembrado, porém de fundamental importância na poesia brasileira: Emílio Moura. Como não evocá-lo de novo? Em “Permanência da Poesia”, está escrito: (…) “A beleza é eterna. A poesia é eterna./ A liberdade é eterna./ Podem exilar a poesia: exilada, ainda será mais límpida.// As horas passam, os homens caem,/ a poesia fica.// Aproxima-te e escuta./ Há uma voz na noite!// Olha: há uma luz na noite!”.

 

 

Referências
“Meus começos e meu fim”, Nirlando Beirão, Companhia das Letras, São Paulo, SP, 2019.

“A Autobiografia Poética e Ficcional na Literatura de Minas”, Antonio Candido de Melo e Sousa, IV Seminário de Estudos Mineiros, Edições do Cinquentenário da UFMG, Volume I, Imprensa Universitária, Belo Horizonte, MG, 1977.